Imagine-se com os músculos de suas pernas fritando em ácido lático, seus pés cozinhando na água das próprias bolhas, suas mãos castigadas por diferentes tamanhos e espécies de espinhos e seus cuspes secos num voo frustrado com aterrisagem no próprio queixo. Minha esposa é apenas mais uma a engrossar o coro daqueles que me perguntam: “Que graça há nesse tipo de aventura que parece só ter sofrimento?”
Os números da trilha da Fazenda Serra Fina até o topo da Pedra da Mina impressionam: O desnível de 1198m equivale a subir do térreo ao último andar do maior prédio do mundo na atualidade, o Burj Khalifa Dubai com 828m somado ao Empire States de Nova York com 381m.Confesso que nos momentos críticos da subida, entre o 1° e o 2° espigão, fiz o mesmo tipo de pergunta para mim mesmo e conseguia enxergar apenas alguns pingos de graça apenas na paisagem deslumbrante. Entretanto, após o terceiro dia do fim da jornada, minha mente começou a deletar gradativamente tais sofrimentos assim como o meu corpo, ainda entorpecido de relaxantes musculares, recupera-se do excessivo esforço. Acredito que em apenas uma semana esse processo de eliminação dos pontos negativos esteja concluído e a vontade para realizar novas empreitadas esteja plenamente reestabelecida. Meu desnível para com meus companheiros de viagem é tão intenso quanto ao desnível da trilha de 1198m. Ivan “Véia-Russa” tem menos gordura no corpo do que a picanha que eu comi hoje no almoço. Halmer “Megafone-embutido-na-goela” só come peixe e frango e tem os pés do Shrek. Os dois são verdadeiros “atletinhas” que disputam provas de corridas de aventura, pedalam, nadam e correr meias-maratonas e maratonas inteiras. No outro corner, com 38 anos e pesando exatos 100kg (fora a mochila), categoria quase-sedentário: Marreco Bill!!! Realmente a mochila fica mais pesada perto dos 40 anos e um estilo de vida com raros oásis focados em saúde. Hoje em dia dói muito mais que “antigamente”, quando eu era um baguázão selvagem de 25 anos rasgando a Cordilheira dos Andes rumo a Macchu Picchu. Atualmente qualquer porrezinho dá uns 3 dias de ressaca…
Sexta-Feira, 13/07/2012 – De Sampa para Passa Quatro - MG
De cara enfrentamos o obstáculo mais chato da viagem: congestionamento na Marginal Tietê, num dos dias mais frios e secos do inverno, até pararmos num posto para abastecer o carro e a nós mesmos. A lanchonete parecia mais um evento da SPFW (São Paulo Fashion Week), pois dezenas de integrantes da classe média paulistana desfilavam entre Coca-Colas Zero, sucos de milho e coxinhas de frango com catupiry. O ambiente exalava perfumes importados que se misturavam no ar para quem quisesse cheirar gratuitamente, para nossa sorte, pois se fosse cobrado, cada fungada custaria pelo menos “deizão”.Devidamente abastecidos, chegamos em Passa Quatro, uma cidade encantadora e eu sou suspeito de falar, pois adoro Minas Gerais e seus doces de leite, “bróba”, cidra, bananadas, goiabadas, queijos e cachaças artesanais. Jantamos no Napoleão (http://napoleaop4.com.br/), um Lounge/Choop/Café ao pé da Matriz, sendo que a entrada foi um caldo de feijão para espantar o frio, seguido de um sanduíche de linguiça defumada com geléia de pimenta. De quebra ainda dá para ficar curtindo os quadros com as fotos de um dos sócios. Aliás, a origem do nome da cidade se deve à orientação os bandeirantes (GPS do século 17): “ Vai, do rio Paraíba do Sul, verás ao teu nome uma grande cordilheira, a Mantiqueira. E ao encontrares nela uma garganta profunda, é o Embaú,a única passagem tranquila para o Sertão das Gerais, então galga a serra e Passa Quatro vezes o rio que se escorrega por um verde espaçoso vale. “Por volta das 21h00 rumamos para o bairro Paiolzinho e na sequência, até a Fazenda Serra Fina, quando a estrada acabou numa porteira. Descemos do carro e fomos recepcionados por uma dúzia de vira-latas magrelos e barulhentos. Como nenhum ser humano apareceu, pedimos licença para a cachorrada e abrimos a porteira para montar acampamento num pasto plano. Foi a estréia, sob um céu estreladíssimo, da minha barraca para uma só pessoa (se você tem claustrofobia, não compre uma barraca dessas).Dormi feito um santo com a temperatura de 6° Celsius, sendo despertado eventualmente por algumas fungadas caninas curiosas ao redor da minha barraca . Talvez fosse um lobisomem ou um chupa-cabra, vai saber… Lá pelas 4 da matina, um galo lazarento no fuso horário de Londres começou a cantar e a cachorrada latia e vacas mugiam formando um conjunto musical no estilo da fazenda do velho McDonald, digno de entrar na coletânea da fita K7 do MC Peter Coringão. Depois de um tempo, os ouvidos acostumam e eu até que tentei virar de lado, mas a barraca para uma só pessoa inviabilizou minha tentativa.
Sábado, 14/07/2012 – A Subidona
Enquanto desmontávamos o acampamento tomando um chá-de-qualquer-fôia a lá Vilas Boas para esquentar, a tia da fazenda trouxe um livro para assinarmos e mostrou o lugar para estacionarmos o carro. Tudo pronto. Foto do antes para comparar com o depois. Mochila nas costas e pé na trilha. Por volta das 8h30min começamos a caminhar. A trilha é bem sinalizada e sem dificuldades até se chegar a um local para acampar no meio de uma mata de bambus por volta do 3º km, próximo ao último suprimento de água da trilha. A partir deste ponto, conforme se pode observar melhor na altimetria da primeira figura deste post, o nível de dificuldade aumenta muito.É um paredão que se levanta em meio a vegetação de Mata Atlântica e que mesclar caminhada com escalaminhada. Haja fôlego, força, perna, pulmão e coração. Seu cérebro escaneia cada centímetro de sua mochila em busca de cada grama excedente no peso para atribuir o veredicto de culpado à sua preocupação demasiada com o que comer e vestir. Neste momento a sua natureza interna expõe as suas trevas que encobrem toda a exuberância da natureza externa ao seu redor, tornando-a dispensável. Enquanto o desejo de realizar demanda hercúleo esforço, o desejo pelo conforto clama pela desistência. É uma batalha interna que me fez compreender o que Salomão disse há 4 mil anos atrás sobre ser mais fácil conquistar uma cidade fortificada do que dominar a si mesmo.Enfim o 1º espigão foi vencido, revelando outro ainda mais alto a se iniciar após uma descida. Pensei em desistir e falei em desistir. Mas meus companheiros me incentivaram a prosseguir, o que é assunto para um outro post sobre liderança e motivação.Chegamos ao topo do 2º espigão, conhecido como O Enganador, pois a partir dele, finalmente a Pedra da Mina é revelada aos nossos olhos ainda mais alta e com a necessidade de uma descida antes de se iniciar o derradeiro ataque ao cume. Nessa altura do campeonato, nem se eu quisesse dava para desistir, pois afinal estávamos a nos “30 minutos do segundo tempo” e a parte final é mais fácil que o primeiro paredão, pois vegetação é mais escassa e rasteira, além de não ter tantas pedrinhas e pedregulhos que são verdadeiras armadilhas para tombos.Um pouco antes do cume, encontramos com um grupo de 17 pessoas fazendo a travessia de 4 dias pela Serra Fina. Mochileiros são muito amigáveis e sempre que se cruzam trocam informações, dicas e desejam sorte uns aos outros. Sempre se faz muitos amigos em trilhas como essa, por isso é legal carregar alguns cartões de visita para trocar. Encontrei uns caras de Araras que conheciam minha família que mora naquela cidade.
Acampamento na Pedra da Mina
Uáu! É vista de avião: vales, rios, cidades, estradas e até nuvens lááá em baixão. Uma paisagem fantástica que se alia à superação e conquista para compor a emoção do momento. Não adianta ver através de fotos ou assistir por um vídeo, pois não há nada que se compare ao fato de estar presente.A comemoração teve que ser encurtada, pois o sol despencava pelas “montanhinhas” a oeste e nós seríamos os únicos a encarar o vento e o frio para acampar no topo da Serra da Mantiqueira, que significa “Montanha que chora” em Tupi-Guarani, numa alusão as suas numerosas nascentes de águas cristalinas.No cume existe uma caixa metálica chumbada na pedra com um caderno e canetas para os aventureiros deixarem seu nome e uma mensagem, mas o mesmo encontra-se mais cheio que o metrô de São Paulo na hora do rush em véspera de feriado. Se você está lendo este post e pretende subir a Pedra da Mina, leve um caderno novo para que os próximos aventureiros deixem sua marca na montanha.É possível avistar, entre outros, o Pico das Agulhas Negras, o qual era considerado até o ano 2000, como o ponto culminante da Mantiqueira, até que o geógrafo Lorenzo Giuliano Bagini, constatou através de suas medições que a Pedra da Mina é 7m mais alta que as Agulhas Negras, onde tive o privilégio de chegar ao topo em 2010, também com Halmer, Ivan e mais Aleto “Mão-de-Alicate” e Joed “Pança-de-Bacalhau”.Armamos as barracas ao lado de um murinho rudimentar de pedras deixado por aventureiros que nos antecederam para proteger do vento. Começamos a preparar o jantar às 18h00 e comprovamos que a fome é o melhor cozinheiro do mundo: o menu foi arroz com strogonoff e, apesar do racionamento severo de água, ainda nos demos o luxo de tomar um copo de 150ml de Tang Limão, que foi o MELHOR suco que já tomei em toda a minha vida, sendo que cada gota foi saboreada intensamente por cada papila gustativa.Antes das 19h00, a temperatura DENTRO da barraca era de 3° Celsius, o que me obrigou a retirar-me aos meus aposentos prematuramente e sem remorso de perder o espetáculo das estrelas.
Para enfrentar a friaca? Underwear second skin superior, posterior e meias, calça, blusa e gorro de fleece, meião e luva de esquiar, calça da trilha, casaco, saco de dormir e para garantir, ao alcance das mãos, um cobertor térmico aluminizado de emergência, o qual não foi utilizado, pois dormi feito um anjinho das 19h00 até às 07h00, sem a cachorrada magricela latindo e o galo londrino cantado.
Domingo, 15/07/2012 – A Descidona
Enquanto desmontávamos acampamento, um cara com seus 50 e poucos anos vestindo uma blusa de lã, calça jeans e um SAPATÊNIS se aproxima ao lado de seu filho. Minha primeira impressão era de que deveriam ter descido de helicóptero, mas eu estava enganado. Eu me senti um Mauricinho fracote ao comparar minhas preocupações em comprar botas Timberland impermeáveis para trekking y otras cositas más. O cara subiu o mesmo subidão com mais idade, mais barriga, de sapatênis e praticamente sem água: “Eu passei pelo riachinho, mas não quis encher com muita água pra não ficar carregando peso a toa…” Figuráááça!!!Desce, Desce, Desce, sobe um pouquinho, desce, desce, sobr mais um pouquinho, desce um montão, cai, levanta, desce mais um pouquinho … Tá parecendo música do Tchan… Quando finalmente atingimos o córrego para matar a sede, preparamos uma garrafona com o outro saquinho de Tang Limão e cada golada não tinha nem de perto a mesma volúpia de cada gota da noite anterior. Como tudo que sobe, tem que descer, o paredão revelou-se um carrasco cruel para minhas pernas já cansadas. Cada passo exigia esforço e atenção para não escorregar nas pedrinhas e pedregulhos. Levei um tombaço e cai para fora da trilha no meio de uma moita de capim elefante. Sorte que não tinha nenhuma pedra para arrebentar meu côco. Houve um momento que minhas pernas doíam tanto que se eu não fosse um piá pêlo-duro macho, poderia jurar que estava chorando de dor, mas como você, meu caríssimo leitor, já está careca de saber, homens não chorar e acho que era uma espécie de “suor do zóio”. Faltando pelos menos 2 horas para o final da trilha, finalmente aprendi a lição e encontrei não apenas uma resposta para aqueles que não conseguem ver sentido numa aventura como esta. Percebi que enquanto eu só estava me preocupando em chegar ao topo ou chegar ao fim da trilha, estava desperdiçando momentos únicos que ocorriam no presente. Fiz uma analogia da trilha e suas subidas e descidas com a vida. Concordei com a conclusão de Ed René Kivitz de que a felicidade não é um destino, mas é o próprio caminho. Percebi que o prazer efêmero da conquista de se chegar ao topo não fará sentido se eu não gostar da caminhada, pois é como o sujeito que trabalha o mês inteiro em algo que detesta e acredita que o dia do pagamento trará o sentido que lhe faltou no resto do mês. Lançar-se numa aventura como esta é ousar entrar em contato com sua natureza interior de maneira muito mais intensa que a natureza ao redor. Eu aprendi mais sobre meus limites físicos, mentais e tomei altas doses de maturidade ao refletir sobre aquilo que realmente é importante na vida. Acredito que me tornei uma pessoa e um amigo melhor. Tive lições práticas de liderança motivacional, audição ativa, humildade, companheirismo e resiliência entre tantas outras coisas. Repensei minha vida, tracei diretrizes para me reinventar, meditei, orei, cheguei mais perto de mim e de Deus… – E o sofrimento durante a trilha?
Que sofrimento???
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