Embriagados pela música ‘Fim do dia’ e por brejas estupidamente geladas, que contrastavam com o calor de corpos perfumadamente suados, dançantes, cantantes e vibrantes daquelas(es) que seduziam aqueles(as) que eram seduzidos(as).
– Bill, vamos chegar mais perto do palco que eu quero entregar o livro para ele!
– Putz Grilis, Flávio! Você inventa cada coisa… Vai indo, então! Vai se enfiando no meio dessa muvuca…
Na sua devota missão de entregar o seu livro D.I.L.E.M.A. nas mãos de Arrrrrrnaldo Antunes, o titânico descosteletado, Flávio foi se enfiando entre tapas e beijos, ódio e desejo, paixão e ternura de casais, quase casais, ficantes e membros do Independente Futebol Clube.
Na sua retaguarda, Bill murmurava ininterruptamente diante das sombrias previsões iniciais que se confirmaram ainda no meio da jornada entre o bar e o Arnaldo: As cervejas acabaram e os cigarros também… Não haveria retorno disponível nas próximas três músicas até o palco: As árvores, Música para ouvir e Socorro.
Socorro! Chegamos perto do cara:
– Vai que é sua, Flávinho! Entrega o livro de uma vez e vamos voltar logo para o bar que eu preciso tomar uma breja!
– Não empurra, não, Bill!
– Você já tá do lado do cara, mais perto do que isso só se você se pendurar no saco dele!
Arnaldo Antunes se sentou na borda do palco e começou a cantar ‘Se no meio do que você tá fazendo você para’. Flávio sentiu seu estômago penetrar em seus pulmões e suas pernas tremerem de emoção por estar tão próximo de seu ídolo e também porque tinha almoçado só duas coxinhas de frango com catupiry e não tinha jantado, o que dava uma baita fraqueza, além do tradicional bafo-de-quem-não-comeu-nada-o-dia-inteiro.
Com a segurança de uma ‘véia’ em pé em cima de uma canoa, deu dois toques leves e rápidos na coxa direita do Arnaldo, que nem percebeu. Esperou mais uns trinta segundos e deu mais dois toques leves, que desta vez foram sentidos pelo cantante, que aparentou ter saído do transe artístico por dois segundos e meio. Flávio esperou outros trinta segundos e deu três toques pesados, fortes e bem lentos na coxa do Arnaldo, que parou de cantar, fez a cara de camelô de DVD pirata quando o comprador quer pagar com uma nota de cinquentão.
Flávio foi fuzilado com um olhar que faria um gárgula procurar um psicoterapeuta imediatamente.
O guitarrista vendo a cena parou de tocar, sendo seguido imediatamente pelo efeito dominó de um silêncio viral que passou instantaneamente pelo baixista, percussionista, baterista, até espalhar-se com a velocidade da luz por toda multidão presente ao show.
Ninguém se mexia. Ninguém piscava. Ninguém respirava.
O silêncio mortal era tão sufocante que seria possível ouvir um pernilongo no banheiro feminino, mas até os pernilongos estavam no mais profundo silêncio que se tem notícia na história documentada do nosso universo conhecido.
Sem desviar o olhar impetuoso e fervilhante dos olhos pregados de um Flavinho segurando o choro e o mijo, Arnaldo Antunes rompe o transe coletivo cantando:
“ O silêncio
Foi a primeira coisa que existiu
Um silêncio que ninguém ouviu
Astro pelo céu em movimento
E o som do gelo derretendo
O barulho do cabelo em crescimento"…
Nos próximos 5 minutos, Flávio e Bill ficaram completamente imóveis, sem mexer nenhum músculo com os olhos arregalados, boca aberta e um tambor batendo alucinadamente no peito:
– Flávio! Por que você não entregou o livro?
– De que jeito, Bill? Você viu o jeito que ele olhou para mim?
– Vi!
– Você conhece algum terapeuta que possa conversar comigo agora?
– Calma Flávinho! Não precisa chorar deste jeito! Vamos tomar uma cerveja e comer alguma coisa urgente! A onça dentro da sua boca tá brava demais… Chupa esse drops extra forte, pelo amor de Deus!
Depois do show, no camarim, Arnaldo Antunes autografou em uma folha de cheque do Flávio, que cumpriu sua missão sagrada ao entregou seu livro D.I.L.E.M.A. com dedicatória ao seu ídolo.
Bill, conseguiu o autógrafo no ingresso do show e, ignorando as advertências, pegou a estrada de volta para casa com seu Opala metálico azul e atropelou um cavalo malhado carinhosamente apelidado de Pé-de-Pano pelos moradores das redondezas.
Arnaldo Antunes seguiu sua carreira artística.
Bill passou foi embora para a Inglaterra e queria aprender a fazer tatuagens de henna para passar o verão em Ibiza.
Flávio é professor de matemática em cursinhos e faz terapia até hoje.
Pé-de-Pano morreu atropelado por um ônibus cheio de sacoleiros que voltavam do Paraguai.
O dono disse que ele adorava ser atropelado.
Comments